Há 90 anos, surgia documento que, ao questionar “discurso do colonizador”, abriria caminho para a Antropofagia. Eis o texto
Por
Oswald de Andrade | Imagem:
Theodore de Bry,
Cena de Canibalismo 1592
[Primeiro texto de uma série sobre a
obra de Oswald de Andrade e sua atualidade, a ser publicada até
outubro, quando se completam 60 anos da morte do escritor e pensador.
Saiba mais aqui]
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil.
Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação
étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a
dança.
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Toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil. O lado
doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos. Comovente. Rui
Barbosa: uma cartola na Senegâmbia. Tudo revertendo em riqueza. A
riqueza dos bailes e das frases feitas. Negras de jockey. Odaliscas no
Catumbi. Falar difícil.
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O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando
politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser
doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos. O
Império foi assim. Eruditamos tudo. Esquecemos o gavião de penacho.
A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.
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Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram.
A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas de casa tratando de cozinha.
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
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Tinha havido a inversão de tudo, a invasão de tudo: o teatro de tese e
a luta no palco entre morais e imorais. A tese deve ser decidida em
guerra de sociólogos, de homens de lei, gordos e dourados como Corpus
Juris.
Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Agil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia.
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
Uma sugestão de Blaise Cendrars: – Tendes as locomotivas cheias, ides
partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O
menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino.
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Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de
jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A
contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
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Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros.
Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação.
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Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias
do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que
não fosse lã mesmo não prestava. A interpretação no dicionário oral das
Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho… Veio a
pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a
máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da
caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede.
Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano
de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela.
Stravinski.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
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Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E
as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1ª) A deformação através
do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e
Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 2ª) O lirismo, a apresentação no
templo, os materiais, a inocência construtiva.
O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira
construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia
Pau-Brasil.
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Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos.
A síntese
O equilíbrio
O acabamento de carrosserie
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
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Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil
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O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
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Uma nova perspectiva.
A outra, a de Paolo Uccello criou o naturalismo de apogeu. Era uma
ilusão ótica. Os objetos distantes não diminuíam. Era uma lei de
aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia.
Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de
outra ordem: sentimental, intelectual, irônica, ingênua.
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Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos
livros, crianças nos colos. O reclame produzindo letras maiores que
torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes.
Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios
e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos
fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte.
A reação contra o assunto invasor, diverso da finalidade. A peça de
tese era um arranjo monstruoso. O romance de idéias, uma mistura. O
quadro histórico, uma aberração. A escultura eloquente, um pavor sem
sentido.
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos
cantando na mata resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma
valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o
presente.
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Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula
e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da
mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de “dorme nenê que o bicho vem
pegá” e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas;
nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o
Museu Nacional. Pau-Brasil.
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Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar.
A reza. O carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco
sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar.
Pau-Brasil.
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O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
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O estado de inocência substituindo o estado de graça que pode ser uma atitude do espírito.
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O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
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A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna.
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Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de
mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting
cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas.
Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia.
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Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais.
Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o
minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil.
OSWALD DE ANDRAD
Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
Fonte:
outraspalavras.net